Dirigir uma associação com quase quatro mil associados não é tarefa fácil. É coisa para uma mulher acostumada a lutar, organizar e que sabe se mexer, além, é claro, de saber mexer muito bem a massa do acarajé. Essa mulher é Rita Maria Ventura dos Santos, que há mais de dez anos dirige a ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos da Bahia. Nesta entrevista ela nos conta um pouco dessa trajetória, fala da relação entre o acarajé e o candomblé e sobre os dez anos do reconhecimento do ofício das baianas como patrimônio imaterial e cultural do Brasil.
Bahia tem Dendê – Com tantas lutas e conquistas, o que o Memorial das Baianas representa para as baianas de acarajé no estado?
Rita Santos – O Memorial é um centro de referências do ofício. É onde as pessoas têm uma referência do que ele é. Recebemos 25 mil pessoas por mês, e é onde você vai achar diversos artefatos que contam a história do ofício. Por exemplo, a pedra onde era moído o feijão antigamente, a sinhá, a baiana vestida, a baiana de passeio, a baiana da Boa Morte, fotos do Benin e de outros países que mostram a relação que a gente tem com os outros países. E a gente conta tudo isso, com vídeos fotos e todo esse acervo. Ele é um ponto de cultura, a gente recebe gente de todos os países, todo mundo quer entrar e olhar e fica encantado com o que vê.
Bahia tem Dendê – Nos fale sobre a Associação, a ABAM e como ela surgiu em defesa dos direitos das baianas de acarajé.
Rita Santos – Aí eu preciso contar uma historinha. Clarice e a mãe dela, Dona Clotilde, eram baianas de acarajé de Itapuã, e nessa época só existia uma entidade de cuidava das baianas de acarajé que era a Federação Nacional do Culto Afro Brasileiro (Fenacab). Todas as baianas de acarajé eram ligadas à Federação, porque eles cuidavam dos terreiros, e era predominante que as baianas que vendiam acarajé fossem de terreiro. Após alguns problemas administrativos, que passaram a prejudicar as baianas, Dona Clotilde se juntou a mais 17 baianas lá em Itapuã e criou a ABA – Associação das Baianas de Acarajé – na laje da casa dela na Rua da Mangueira. Lá ela começou a dar curso, ensinar outras mulheres, e a ABA cresceu e veio aqui para o Pelourinho. Eu entrei em 2001 e passei a ser voluntária. Trocamos o nome de ABA para ABAM e agregamos as mulheres do mingau. Hoje nós promovemos muitos cursos por meio de parcerias que colaborem na formação destas profissionais, a exemplo do trabalho que visa recolher e reciclar o óleo. Então, esse é o trabalho que a ABAM vem fazendo para difundir e colaborar para o ofício das baianas de acarajé, mingau, beiju, e agora também as moquequeiras de Saubara. Estamos em 15 municípios baianos e já temos a ABAM oficialmente também no Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza. Temos núcleos em Manaus, Brasília, Paraíba, Rio Grande do Sul, além de Portugal, Espanha, Áustria e Nigéria.
Bahia tem Dendê – Como a ABAM lida com a comercialização do chamado “bolinho de Jesus”, que já gerou e continua inflamando polêmicas?
Rita Santos – Já usei todos os artifícios que estavam sob o nosso poder. Já mandei carta pra Brasília, já mandei carta para o IPHAN, já tentei patentear o nome acarajé e marcas e patentes diz que não pode. Existe um decreto municipal que diz que para você vender acarajé em logradouro público você tem que estar de bata, de saia e de torço. Se elas estiverem vestidas, caracterizadas todo mundo vai saber que ali tem acarajé. Ela pode até dizer que é bolinho, mas ela vai estar vestida de baiana, e elas não estão. Mas precisa ser cumprido e fiscalizado.
Bahia tem Dendê – Como a religiosidade afro-brasileira se integra à atuação da ABAM?
Rita Santos – A gente trabalha em função disso. Eu sou de terreiro, e muitas mulheres aqui também são. Em Fortaleza, por exemplo, a associação foi criada dentro de um terreiro, mas não de Candomblé, e sim de Umbanda, que eles conhecem a nossa tradição e a associação funciona lá. Em São Paulo, funciona em um terreiro em Hortolândia. Estamos tentando alinhar os núcleos e as associações justamente dentro dos terreiros que é para preservar a nossa cultura e a nossa essência, porque o acarajé, querendo ou não, ele é uma oferenda de terreiro, é uma oferenda para Oyá, é uma oferenda para Xangô. Então, a gente não pode perder isso. Ele se tornou comercial, mas a essência dele vem da religião, então a gente tem que preservar isso. A gente quer é respeito, pois a religião está no coração.
Bahia tem Dendê – O que o mapeamento das baianas indicou como resultado?
Rita Santos – Achávamos que os homens representariam mais de 10% do quantitativo que vende acarajé, mas vimos que é 1% apenas em relação às mulheres. Pode ser que existam muitos homens fora, mas que a gente não tem o conhecimento. E a outra surpresa é uma baiana que é peruana. Ela nasceu no Peru e é baiana de carajé, trabalhando no Rio de Janeiro.
Bahia tem Dendê – Nos fale do que é, para você o projeto “A Bahia tem Dendê”, o que ele representa para a ABAM neste momento.
Rita Santos – Estou feliz da vida, porque a gente ainda não tinha o site. O que a gente tem é uma página no Facebook, e agora com esse site, se a gente já estava ano mundo, vai melhorar ainda mais. E eu espero que esse site dê certo, é um presente que nós estamos recebendo. É o único presente que estamos recebendo pelos 10 anos de patrimônio. Temos pessoas de outros países que querem pesquisar sobre baiana de acarajé, e vai ser muito mais fácil a gente ter esse contato com essas pessoas através desse site.
Bahia tem Dendê – O acarajé é o símbolo maior de toda esta luta das baianas, da ABAM, um ícone na cultura afro-brasileira. O que não pode faltar no verdadeiro acarajé da Bahia?
Rita Santos – O ‘pulo do gato’ para se fazer um bom acarajé é fazer com carinho e com amor, porque a receita todas fazem, não tem modificação, não tem outra coisa para você colocar, mas é com o carinho e com o amor no bater, de você conversar com seus orixás, quem é de terreiro como eu, na hora que está batendo a massa. O melhor acarajé é o da Bahia, mas o feito com amor. Se não é feito dessa forma não é acarajé, é qualquer coisa, é bolinho de feijão frito no azeite de dendê, porque acarajé é aquele feito com amor, carinho, respeito e qualidade.